É preciso resistir à tentação de ser humano.
Jonathan Litell [As Benevolentes
Meu nome é Hans Yakov e sou um sobrevivente, não no sentido que talvez vocês compreendam da palavra, mas num sentido diferente, até um pouco particular. Gostaria de contar alguns trechos de minha vida que acredito merecerem algum registro, mesmo que de alerta sobre o que não deve ser feito, de maneira alguma a outro ser humano, tão ser humano quanto você, ou seu amigo, irmão, pai ou mãe. Percebam que não me incluo na categoria mencionada acima, pois pertenço a uma outra classe: a dos que conseguiram resistir à tentação de ser um.
Queria começar pedindo a compreensão de todos. Não espero que me perdoem, tampouco pretendo que aceitem ou entendam que com o que vou contar, eu esteja tentando dar algum tipo de justificativa. Não, ao que eu fiz, não cabe dúvidas ou consternações. O que segue é apenas um relato, um expurgo dos arrependimentos que guardei dentro de mim até agora.
Eu sou um veterano da 2ª Guerra Mundial, servi ao exército alemão e ao Führer e sou culpado pela morte de pouco mais de 6 milhões de pessoas. Sim, estou plenamente ciente dos meus atos e de suas conseqüências. À primeira leitura, para alguns pode parecer uma afirmação exagerada. Posso não ter levado a cabo todas elas, posso não ter estado em todos os locais de execução, onde miolos eram arrancados pela força das minhas balas, onde crianças de olhos abertos eram enterradas em valas junto às suas mães, posso não ter visto essas mesmas mães chorando a morte de seus filhos, pra depois serem mortas (sem antes serem estupradas é claro), posso não ter violentado milhões de homens em sua integridade, em sua honra, mas feri suas almas e aceito minha culpa por isso. Outros poderiam afirmar que a culpa é relativa, pois se valem da justificativa de que agiam e agem em prol da ordem, do melhor para todos, já outros como eu, talvez não se sintam assim, tão à margem do sofrimento alheio. Sem dúvidas, agir em prol de um bem maior é uma explicação forte, eu diria até que contundente. Aliás, é na maioria das vezes em prol do melhor que se consegue o pior, às vezes um pior inimaginável.
Gostaria de pedir um favor a quem me lê agora. Peço que fechem os olhos e imagine a feição da criança mais próxima a vocês, seja filho, primo, sobrinho, enfim, o que desejarem. Agora imaginem um mundo onde essa criança era vista por alguns como um animal, somente por ter uma ascendência “racial” diferente da sua. Imaginem um mundo que era capaz de estourar os miolos dessa criança por esse motivo. Vocês não conseguem não é? Eu não os recrimino por isso, é natural.
Por onde passei, deixei um rastro de dor e destruição. Deixei olhos vidrados, desacreditei homens bons e trouxe pecado a todo solo virgem que pisei, rasgando almas e dilacerando o resto de esperança de quem cruzava o meu caminho. Certo dia, após chegarmos a uma cidade totalmente destruída por um bombardeio numa manhã fria e atípica de primavera, fui surpreendido por uma menina de olhos azuis, tão azul quanto o céu daquele dia. Ela puxava minha mão com força, seus olhos lacrimejados e pidões como o do meu cachorro Loup que ganhei quando criança, enquanto morava em Stuttgart. Perguntei onde estava sua mãe, ela me apontou uma vala próxima onde sua mãe nua fora fuzilada há poucas horas, abaixei até ficar à altura dos seus olhos, lhe esbocei um sorriso, acariciei seu cabelo e chamei um dos soldados. Pedi que fosse gentil com ela e me afastei dali, me embrenhei na floresta próxima, mas a tempo de avistar de relance o soldado descendo com ela em direção a vala, onde sua mãe nua e morta repousava, de escutar ao longe, o estilhaçar de mais um alma.
Não fui cruel, quando me lembro desse episódio prefiro compará-lo a outro pelo qual passei. Eu caçava na floresta com meu pai ainda bem moço, quando escutei ao longe piados estridentes de filhotes de Jayhawks (pássaros comuns no meu país), procurei entreouvir e tentar localizar a fonte daquele som e finalmente cheguei a uma árvore enorme, bem ao lado um ninho com três filhotes piavam enlouquecidos com seus bicos enormes, abertos pedindo comida. Mas à frente, jazia o pequeno e frágil corpo decapitado da mãe. Vendo aquela cena, imediatamente matei os filhotes e os enterrei para evitar que fossem comidos por qualquer bicho que passasse por ali e fosse adepto de qualquer dieta que incluísse passarinhos suculentos. No final, eu os havia feito um favor, libertando-os de um mundo selvagem onde não poderiam contar com a proteção de ninguém para sobreviver. No final, eu os havia feito um grande favor.