quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Hans Yakov

É preciso resistir à tentação de ser humano.





Jonathan Litell [As Benevolentes]

Meu nome é Hans Yakov e sou um sobrevivente, não no sentido que talvez vocês compreendam da palavra, mas num sentido diferente, até um pouco particular. Gostaria de contar alguns trechos de minha vida que acredito merecerem algum registro, mesmo que de alerta sobre o que não deve ser feito, de maneira alguma a outro ser humano, tão ser humano quanto você, ou seu amigo, irmão, pai ou mãe. Percebam que não me incluo na categoria mencionada acima, pois pertenço a uma outra classe: a dos que conseguiram resistir à tentação de ser um.

Queria começar pedindo a compreensão de todos. Não espero que me perdoem, tampouco pretendo que aceitem ou entendam que com o que vou contar, eu esteja tentando dar algum tipo de justificativa. Não, ao que eu fiz, não cabe dúvidas ou consternações. O que segue é apenas um relato, um expurgo dos arrependimentos que guardei dentro de mim até agora.

Eu sou um veterano da 2ª Guerra Mundial, servi ao exército alemão e ao Führer e sou culpado pela morte de pouco mais de 6 milhões de pessoas. Sim, estou plenamente ciente dos meus atos e de suas conseqüências. À primeira leitura, para alguns pode parecer uma afirmação exagerada. Posso não ter levado a cabo todas elas, posso não ter estado em todos os locais de execução, onde miolos eram arrancados pela força das minhas balas, onde crianças de olhos abertos eram enterradas em valas junto às suas mães, posso não ter visto essas mesmas mães chorando a morte de seus filhos, pra depois serem mortas (sem antes serem estupradas é claro), posso não ter violentado milhões de homens em sua integridade, em sua honra, mas feri suas almas e aceito minha culpa por isso. Outros poderiam afirmar que a culpa é relativa, pois se valem da justificativa de que agiam e agem em prol da ordem, do melhor para todos, já outros como eu, talvez não se sintam assim, tão à margem do sofrimento alheio. Sem dúvidas, agir em prol de um bem maior é uma explicação forte, eu diria até que contundente. Aliás, é na maioria das vezes em prol do melhor que se consegue o pior, às vezes um pior inimaginável.

Gostaria de pedir um favor a quem me lê agora. Peço que fechem os olhos e imagine a feição da criança mais próxima a vocês, seja filho, primo, sobrinho, enfim, o que desejarem. Agora imaginem um mundo onde essa criança era vista por alguns como um animal, somente por ter uma ascendência “racial” diferente da sua. Imaginem um mundo que era capaz de estourar os miolos dessa criança por esse motivo. Vocês não conseguem não é? Eu não os recrimino por isso, é natural.

Por onde passei, deixei um rastro de dor e destruição. Deixei olhos vidrados, desacreditei homens bons e trouxe pecado a todo solo virgem que pisei, rasgando almas e dilacerando o resto de esperança de quem cruzava o meu caminho. Certo dia, após chegarmos a uma cidade totalmente destruída por um bombardeio numa manhã fria e atípica de primavera, fui surpreendido por uma menina de olhos azuis, tão azul quanto o céu daquele dia. Ela puxava minha mão com força, seus olhos lacrimejados e pidões como o do meu cachorro Loup que ganhei quando criança, enquanto morava em Stuttgart. Perguntei onde estava sua mãe, ela me apontou uma vala próxima onde sua mãe nua fora fuzilada há poucas horas, abaixei até ficar à altura dos seus olhos, lhe esbocei um sorriso, acariciei seu cabelo e chamei um dos soldados. Pedi que fosse gentil com ela e me afastei dali, me embrenhei na floresta próxima, mas a tempo de avistar de relance o soldado descendo com ela em direção a vala, onde sua mãe nua e morta repousava, de escutar ao longe, o estilhaçar de mais um alma.

Não fui cruel, quando me lembro desse episódio prefiro compará-lo a outro pelo qual passei. Eu caçava na floresta com meu pai ainda bem moço, quando escutei ao longe piados estridentes de filhotes de Jayhawks (pássaros comuns no meu país), procurei entreouvir e tentar localizar a fonte daquele som e finalmente cheguei a uma árvore enorme, bem ao lado um ninho com três filhotes piavam enlouquecidos com seus bicos enormes, abertos pedindo comida. Mas à frente, jazia o pequeno e frágil corpo decapitado da mãe. Vendo aquela cena, imediatamente matei os filhotes e os enterrei para evitar que fossem comidos por qualquer bicho que passasse por ali e fosse adepto de qualquer dieta que incluísse passarinhos suculentos. No final, eu os havia feito um favor, libertando-os de um mundo selvagem onde não poderiam contar com a proteção de ninguém para sobreviver. No final, eu os havia feito um grande favor.

domingo, 7 de agosto de 2011

Verso do retorno



Se um dia o encanto acabar.
E pó, e fogo sucumbir.
Aos prantos e cânticos d'outros tempos.
E a flor um dia murchar e perecer perante a impaciência do tempo.

Se um dia tua dor sumir.
E teu coração resistir à guerra e principalmente à paz.
Se teus pobres pensamentos um dia não forem mais.
Se teu corpo tremer em alusão a tua alma.

E se a escuridão tapar seus olhos.
Clama e chama Teu Deus.
Chore e ajoelhe-se por mim, a glória.
Se um dia fugir, se um dia acabar.

Se um dia nascer, se um dia morrer.
Chore rios de lágrimas e derrame oceanos de sangue.
Mas volte. Impávido colosso, hercúleo, visceral, transcendente.
Mas volte, simplesmente.

Imagem por imxanxillusion

sábado, 6 de agosto de 2011

Solidão


21h24min era o que marcava o relógio da cozinha e já não fazia mais sentido esperar. Já era preciso aceitar que ninguém chegaria e mesmo que por um milagre a porta agora se abrisse, não existiria qualquer desculpa boa o suficiente. "Atrasos acontecem o tempo todo", pensou tentando acalmar a raiva que borbulhava e fazia queimar seu estômago. Estava tudo pronto, seria aquela noite e não passaria dela, com ou sem aquela porta se abrindo. Destino, livre arbítrio, certeza, esperança, eram palavras que se misturavam àquela altura pendendo suas certezas e dúvidas para uma balança imaginária cujo peso era praticamente impossível de suportar. A vida é um caminho sem volta, sem atalhos e sem possibilidades. É um pacto tácito com Deus. Deus!? Onde Ele está que não abriu a porta pra me salvar? Ou Ele é a porta? 21h36min e é agora o silêncio que perturba. Sua cabeça dói e sente náuseas. A porta continua fechada e o relógio continua lá, frio e indiferente à todo aquele cenário, tiquetaqueando seus malditos ponteiros, desafiando sua própria coragem para um confronto mortal. Tudo é tão simples mas nós complicamos tudo porque nós gostamos de explicações e de longos porquês.
Alguns de nós já morreram, por dentro, e vagam por aí sem destino. O mal reina incólume no coração e na mente de muitas pessoas e o que eu quero é libertar o meu mundo dele, da sua tirania cruel e covarde. 21h48min e tudo está como nunca esteve antes, a cada minuto mais perto de se esvair como se água em calefação, de uma vez só. Abra a porta, foi o que pensou ter escutado em mais um arroubo imbecil de esperança para que ela se abrisse sozinha e lhe mostrasse um outro caminho, para bem longe daquele cômodo de expiação. Tudo vai ficar bem, já está quase na hora. Somente um sopro, e nunca mais sinto nada. Ninguém mais vai chegar, a porta não vai se abrir. Ninguém vem me salvar. Fecho os olhos e uma escuridão toma todo o lugar. Ainda se escuta ao longe o relógio, impaciente, contando o tempo em segundos. 21h59min e o fim. Do outro lado do corredor era a esperança batendo a porta, desesperada para entrar, procurando uma brecha, uma fresta, que seja! A porta estava trancada à chave e nunca mais se abriria, para ninguém.


segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Buquê


Traga-me um buquê de flores amarelas pra me trazer fortuna. Um branco, pra me trazer paz e um terceiro, vermelho-sangue. Finja que me ama. Olhe no fundo dos meus olhos e enxergue teu prazer. Cola tua boca na minha têmpora, esfregando teus lábios e sentindo com a língua o pulsar de um sangue que se espalha, que vai ao dedo do pé e sobe regozijando ilusão por entre carótidas e batidas descompassadas. É tudo uma coisa só. Trema em meus braços por fingimento ou interesse, não ligo. Diga que fica e morra dormindo em meus braços de polvo. Te tranco entre portas abertas e te arrasto pra um lugar meu. Escravo, dominado, submisso. Traga-me flores para enfeitar e queime-as na sexta-feira. Não vou querer ver cores até lá.